TANTAS-FOLHAS

Francesco Napoli, Kaio Carmona, Maria Esther Maciel | ABC: Poetas BHZ


Para se adequar a este número especial sobre Educação, a coluna ABC: Poetas BHZ traz à cena três poetas que são também professores: Francesco Napoli, Kaio Carmona, Maria Esther Maciel. Desta vez, pedimos aos poetas que enviassem apenas um poema, e que este tivesse relação com o universo da educação. O de Francesco, inédito, se exerce na filosofia; em Kaio, são necessárias pessoas formadas em diversas áreas para tentar descobrir o que há por trás da palavra central de seu poema; e Maria Esther, concisa, faz de sua aula de desenho um objeto de arte.


 

Francesco Napoli

Francesco Napoli
Francesco Napoli. Foto: Rodrigo Valente.

O Plano Collor, por meio do confisco do dinheiro que as pessoas tinham depositado em Banco, arruinou a vida de muita gente no início dos anos 1990. A família de Francesco sofreu com isso, o que fez com que saísse de uma escola particular e passasse a estudar em escola pública. 

Na quinta série do ensino fundamental, o ditado “Há males que vêm para bem” funcionou mais uma vez: foi nessa escola que Francesco ficou amigo de Ângelo, um menino que escrevia poemas e pedia sua ajuda para encontrar rimas. Ele conta: “Aquilo me marcou de tal forma que passei a ver a linguagem como algo lúdico, passei a prestar atenção na palavra como um objeto, que tem forma, tamanho… e que é uma coisa do mundo, além de ser um signo. ”

Anos mais tarde, o que o fez querer continuar a produzir poesia foi seu encontro com Marcelo Dolabela. Francesco diz que “Marcelo escrevia uma coluna no jornal Hoje em Dia, que minha mãe sempre separava para eu ler, pois eram temas ligados à cultura pop com uma profundidade filosófica que só o Dolabela conseguia sintetizar. O conheci entregando a ele, em mãos, o CD de minha primeira banda, Panacea (2001). Ele gostou e escreveu sobre no jornal Hoje em Dia, me dando essa oportunidade incrível de ter um trabalho artístico sendo citado em um jornal de grande circulação. ”

Ele continua: “Depois, Dôla me chamou para integrar a OPEP (Oficina Provisória de Experimentação Poética) e, ao lado de Ana Gusmão, Mary Lisboa, Alda Resende, Ronaldo Gino, fizemos inúmeras performances com textos do Dolabela e tantos outros nomes que conheci por meio deste, que considero ser o meu mestre. Em 2004, Dolabela escreve a orelha de meu primeiro livro de poemas publicado: “Sobre alguma coisa, sobre coisa alguma ou meta-poesia sem meta” e, a partir daí, escrever se tornou um exercício constante. “

Francesco afirma que escreve porque “a poesia é a instância de resistência à linguagem neutralizada pelo sistema, seja pelo excesso de conotação, como na publicidade, seja pela escassez, como na linguagem técnico-científica. A poesia revela o caráter metafórico de toda palavra que, liberta da teia rígida da razão, pode embaralhar os significados, revelando lampejos do inefável. A escrita é uma necessidade, é terapia, é resistência e invenção. Escrever é criar novos modos de perceber o mundo e também de os compartilhar. A escrita provoca, enseja, seduz, engaja, inspira, desloca. É necessário continuar escrevendo para “chatear os imbecis”.

Sobre influências literárias, Francesco cita Wilmar Silva/Djami Sezostre, Marcelo Dolabela, Chacal, Manuel de Barros, Gullar, Arnaldo Antunes, Drummond, Fernando Pessoa, os irmãos Campos, Behr, Rimbaud. “E tantos e tantos outros…”

Sobre seu processo de criação, revela: “Já explorei muito a escrita automática, haicai, textos mais prosaicos, mais concretos, mais próximos de letra de música, etc. Para cada território tenho um processo diferente. Normalmente, anoto ideias e as desenvolvo posteriormente ou não consigo dormir até tentar exaurir as possibilidades. Antes, não gostava de mexer no texto, de trocar palavras; hoje, faço muitas experimentações até achar a palavra que melhor funcione. Antes, nem me passava pela cabeça utilizar dicionários de rimas, hoje eu adoro utilizá-los! Mas uma coisa que sempre fiz é cortar, retirar os excessos. Sintetizar. ”

 

um mundo febril 
que te aponta na cabeça um termômetro 
seria cômico se não fosse frágil 

 

século vinte e um
dois mil e vinte um

 

presta atenção! 
só acerta o lado 
quem tem educação 
saúde, moradia e poesia 
lava as vasilha e depois a pia
efeito pandemia 

 

acham que arte é pra pensar
tudo eles têm que explicar 
o moleque só queria pichar
e dizem que é tipo Basquiat

 

somos o sul, estamos abaixo
damos o salto, estamos no alto
essa é a lei:
do nosso grito do alto da montanha
so ouvimos o delay
em terra de palanque
quem tem o microfone é rei

 

nossa bossa nova é foda, fado e fada fodida 
nossa prosa é tida como boa fala e pópô poesia 
tira a tioria fica o fato, o tato e a vã filosofia

 

a arte é o último reduto da metafísica contemporânea ocidental

 

Mini biografia

Poeta, compositor, guitarrista, pesquisador e professor de Filosofia e Arte. Integra os projetos Falcatrua e nMUnDO, também o espetáculo Rock in Concert da Orquestra Opus. Apresenta, produz e edita o programa de rádio Tropofonia na rádio UFMG Educativa; o podcast Banda de Lá Banda de cá; e o quadro nãoseioquenãnãnã na web rádio Matula. Faz produção e curadoria do Mini Festival de arte contemporânea e performance Durante. Tem três livros de poemas publicados, Sobre alguma coisa, sobre coisa alguma ou meta poesia sem meta (2004), árvore em v (2011) e As Férias de Kant (2016). Tem dois discos solo, Pausa para (2011) e Cavalo e Catarse (2017).

 


Kaio Carmona

Poetas: Kaio Carmona
Kaio Carmona. Foto: Fernanda Wardil.

Kaio escreve desde a infância, desde quando convivia com a leitura, em casa e na escola. Teve pais que o incentivaram a leitura e a escrita, principalmente a  mãe, que lhe apresentava o mundo pelos livros e pelas histórias que contava. Na escola, pelos professores e bibliotecários. Ele conta: “Sempre estudei em escolas públicas com bons professores de Português e de Literatura. Igualmente boas e atenciosas foram as bibliotecárias em minha vida, em especial, Ângela, de uma escola municipal em Belo Horizonte. Foi Ângela quem me apresentou aos poetas daquela biblioteca, brasileiros e estrangeiros. E foi a partir dessas experiências que decidi fazer o curso de Letras e vi que a escrita/leitura seria um projeto de vida – arriscado, mas que eu estava – e ainda estou – disposto a correr”. 

Então, para Carmona, a escrita segue três caminhos singulares e complementares em sua vida: o trabalho crítico e analítico, por meio dos estudos e produção de conhecimento, especialmente no campo de crítica literária; a atividade docente, no contato diário com processos de formação e aprimoramento pedagógicos, com a minha escrita e a dos alunos; e a escrita poética, como autor de livros e de poemas. 

Ele continua a escrever por acreditar que tem algo a dizer. Carmona diz que “Poesia é a maneira mais intensa de relação com o mundo e é por meio dessa linguagem que tento me aproximar da vida, das relações tão complexas com o outro, do processo contínuo que é estar neste tempo da humanidade que me coube. ”

Sobre influências literárias, ele afirma: “Como professor e pesquisador, tento buscar as mais diversas leituras, principalmente a literatura contemporânea. A poesia, no Brasil, vive um momento de grande produção e qualidade. Não saberia apontar exatamente influências literárias, já que cada autor/autora possui uma escrita única, mas acredito que os/as poetas líricos/as me impressionaram e impressionam mais. A leitura de Cecília Meireles, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto é diária e considero Carlos Drummond de Andrade o maior poeta brasileiro. Sempre que posso, volto a eles para entender um pouco mais da poesia e a relação com a vida. ”

Perguntado sobre seu processo de criação, Kaio Carmona diz que “o processo, ou o não processo, é semelhante ao de vários poetas e prosadores. Tenho sempre algum caderno comigo para anotar as ideias que surgem, alguma expressão e palavra que ouço. Presto muita atenção no que meus amigos, vizinhos e familiares falam, muitas vezes são eles quem me fornecem uma imagem, ou verso pronto, para a criação de um poema. Mas sobretudo é a leitura que me faz ter vontade de escrever e criar textos. Algumas dessas ideias ficam guardadas durante um tempo, meses ou anos. Depois as recupero para a finalização do poema, ou para descartá-las. Outras vezes sinto que o verso é tão forte que não me tranquilizo enquanto não termino. No fim das contas, a escrita é para mim inquietação. “

 

Congresso internacional do amor

Chamem médicos, psicólogos, engenheiros,
matemáticos, cientistas!
Uni-vos!
É preciso régua, compasso,
Auscultador, todas as medidas,
precisas.
Tragam lápis, papel, planilhas.
Tragam microscópio, lunetas,
Toda a quinquilharia.
É preciso medir o seu contorno, testar os seus limites.
Acompanhar o seu crescimento, marcar-lhe as transformações.
É preciso muito bem examinar,
Decompor, descontruir, desmedir.
Chamem padres, mães de santo,
pensadores, professores,
toda a sorte de prostitutas.
É preciso compreender muito bem sua conduta.
Recolher relatos, pesquisas, tabelas
É preciso muito bem esmiuçar suas entranhas.
Tragam calculadoras, fita métrica,
bisturi.
É preciso medir sua força tamanha,
Seu fôlego.
Venham filólogos, gramáticos e historiadores.
Farmacêuticos, feiticeiras e druidas.
Uni-vos!
É preciso capturar, estudar.
É preciso entender-lhe o comportamento,
Prever os seus movimentos.
É preciso cortar suas asas, atear fogo aos seus pés,
Decifrar-lhe a língua.
É preciso descobrir o momento em que nasce e
cronometrar a sua morte.
Vamos todos!
É preciso descobrir o que há por detrás da
palavra amor.

 

Mini biografia

Kaio Carmona é professor na Universidade Agostinho Neto e no Centro Cultural do Brasil em Angola (CCBA). Pós-Doutor em Poéticas da Modernidade. Doutor em Estudos Literários pela UFMG, publicou os livros Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Compêndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum, 2017), 26 poetas na Belo Horizonte de ontem (Fino Traço, 2020) e A casa comum (Quixote+Do, 2020). Possui vários artigos publicados e organizou, junto com Vera Casa Nova e Marcelo Dolabela, a coletânea Entrelinhas Entremontes: versos contemporâneos mineiros (Quixote+Do, 2020).

 


Maria Esther Maciel

Poetas: Maria Esther Maciel
Maria Esther Maciel. Foto: Eustáquio Neves.

Antes de ser alfabetizada, Maria Esther Maciel já gostava de inventar histórias. Subia numa goiabeira que havia no quintal de sua casa em Patos de Minas e ficava lá, empoleirada, contando histórias para as goiabas. Ela conta: “Criei muitos contos de fadas assim. Quando aprendi a ler e escrever, quis também escrever histórias. Quanto à poesia, ela chegou à minha vida com Cecília Meireles, que conheci na escola primária. Mas só comecei de fato a escrever poemas quando descobri Carlos Drummond de Andrade e quis imitá-lo. Eu devia ter onze, doze anos”. Nessa época, publicou seu primeiro poema num jornal da cidade. Ela observa que, “curiosamente, o interesse pela crítica também chegou cedo em minha vida. Dos 15 aos 18 anos, publiquei várias resenhas de livros nos jornais patenses, além de crônicas e pequenos ensaios. ”

Sobre influências literárias, diz: “Minhas principais referências vieram sobretudo dos poetas e ficcionistas do século XX: Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Altino Caixeta de Castro, Laís Corrêa de Araújo, Murilo Mendes, Marianne Moore, Octavio Paz, Clarice Lispector e Jorge Luis Borges (meu grande mestre). Hoje, meus autores de cabeceira têm sido J.M.Coetzee, Fiama Hasse Paes Brandão, Georges Perec e Thomas Bernhard. Alguns filósofos-escritores também fazem parte do meu cânone pessoal, especialmente Emil Cioran,e Kierkegaard.”

Processo de criação. “Sempre que leio livros ou textos avulsos que tocam minha sensibilidade e imaginação, fico motivada a criar alguma coisa. Experiências cotidianas também têm sido incisivas para o meu impulso criativo, sobretudo nestes tempos de pandemia. Os cadernos de anotações me acompanham o dia todo. Também gosto de fazer pesquisas, dependendo do projeto literário que pretendo desenvolver. Geralmente, escrevo à noite, com uma taça de vinho e música clássica. De manhã, faço os ajustes formais que julgo necessários.”

Antes de sair e cerrar as cortinas do palco, Maria Esther Maciel fecha a entrevista com uma frase que explicita a profundidade do seu envolvimento com a escrita: “Escrevo porque é uma das maneiras – talvez a mais intensa – de me manter viva.”

 

Aula de desenho

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

 

Mini biografia

Escritora, crítica literária e professora de literatura (UFMG/UNICAMP), nasceu em Patos de Minas, MG. Publicou, entre outros, os livros Triz (poesia, 1998), A memória das coisas (ensaios, 2004), O livro de Zenóbia (ficção, 2004), O livro dos nomes (ficção, 2009, Menção Especial Prêmio Casa de las Américas), A vida ao redor (crônicas, 2014), Literatura e animalidade (ensaio, 2016) e Longe, aqui. Poesia incompleta (1998-2019). Finalista de vários prêmios literários, foi cronista do jornal Estado de Minas (2011-2014) e, desde 2012, atua como colaboradora do caderno “Ilustrada” da Folha de S.Paulo. Idealizou e dirige a revista Olympio – literatura e arte.

 

O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.2, n.2 (2021).

 


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Paulo Vilara

Graduado em História, jornalista, autor dos livros Manhãs com pássaros – Exercícios de síntese (2015); Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011); Palavras Musicais – entrevistas (2006); Congresso Internacional da Bicharada (1996). Tem textos publicados nos livros Os filmes que sonhamos (2011); Histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas (2002); Presença do CEC – 50 anos de cinema em Belo Horizonte (2001) Cinema em palavras (1995). Dirigiu documentários: Mil sons geniais (2004) ; Guignard - A educação do olhar (1996); Cataguases - Um olhar na modernidade brasileira (1988); Dona Izabel - A magia da criação (1985); Carlos Chagas. O passado presente (1981). Ver mais Bibliografia Paulo Vilara. Foto: Pedro Kirilos.

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